América do Sul, década de 70. Reunidos, representantes das forças armadas de seis países resolvem promover um estranho intercâmbio: uma espécie de bloco militar destinado ao fortalecimento dos regimes ditatoriais implantados nas nações do chamado Cone Sul. Troca de informações, perseguição e prisão dos chamados "subversivos" e posteriores julgamentos e tortura dos inimigos do poder. Essa, que ironicamente pode ser considerada a primeira ação integradora promovida entre os países da região -
uma espécie de embrião podre do Mercosul - foi a
Operação Condor.
Até pouco tempo atrás, conhecia muito pouco sobre esse nefasto período da história do continente. Felizmente, pertenço a uma geração que não tem grandes lembranças do período sombrio em que vivemos sob ditadura. Lembro apenas de um ou outro pronunciamento do presidente Figueiredo -
o último presidente militar do Brasil. E é só.
Nessa semana, fiz um mergulho na história da América do Sul. Entrevistei representantes de diversos países; cada qual contando as particularidades das ditaduras que se espalharam na região - com o apoio firme e silencioso do governo norte-americano. E se hoje a democracia parece natural; algo quase compulsório, passa-se a dar muito mais valor a ela quando se tem conhecimento do horror do estado de exceção que as forças armadas impuseram nesses seis países: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia.
Conversei com um senhor paraguaio, o primeiro doutor em Educação daquele país. Ele me contou que foi encarado como inimigo do regime depois que passou a defender a Pedagogia do Oprimido, do brasileiro Paulo Freire. Questionador dos métodos educacionais do país e líder sindical - que buscava melhores condições de trabalho e remuneração para os educadores paraguaios - foi preso e torturado. Com lágrimas nos olhos, descreveu as sessões de tortura com uma expressão que não deixa dúvidas: toda a dor ainda está ali, maltratando aquele corpo. E, revoltado, disse que sua maior motivação para provar a existência dessa ação coordenada entre os governos militares do Cone Sul foi o desejo de saber as circunstâncias que envolveram a morte de sua mulher.
Foi ele o responsável pela localização do Arquivo do Terror, que comprovaram a Operação Condor. Esses documentos foram abertos pelo governo paraguaio e estão disponíveis para consulta.
No vizinho Uruguai, a legislação protegeu os responsáveis pelos crimes da ditadura militar e, por pouco mais de duas décadas, a lei impedia que eles fossem julgados e condenados. Hoje, a legislação estabelece o pagamento de benefícios sociais para as vítimas da ditadura - algo como um Bolsa-Família para quem sentiu na carne a dor da barbárie ditatorial. E são cerca de 100 mil beneficiários, o que dá a exata medida de como a ditadura agiu em larga escala por lá...
No Brasil, onde o custo-ditadura é calculado em mais de R$ 2 bilhões, as forças armadas jamais assumiram a participação na Operação Condor - batizada assim em alusão ao pássaro típico da região andina. Os arquivos militares referentes a esse período, e que poderiam ajudar a identificar as vítimas e os desaparecidos, permanecem sob sigilo. Estima-se que parte dos documentos já tenha sido destruída, o que, se comprovado, pode se configurar num grave crime contra a memória do país. Um crime cometido a serviço da impunidade.
Em todos os países, um traço em comum: segundo especialistas, o longo período sob comando dos militares acabou por gerar grandes perdas para as sociedades. Além de fragilizar o sistema político; importantes programas sociais foram interrompidos. O exemplo mais forte foi o Movimento de Alfabetização de Paulo Freire, impedido de ir em frente. E dá pra imaginar o que seria do Brasil se, há uns vinte anos, o analfabetismo tivesse deixado de fazer parte da nossa realidade, né?
O curioso, ao meu ver, foi perceber como a história parece mesmo cíclica. Os crimes militares cometidos há cerca de três décadas, hoje se repetem em várias partes do mundo. Se antes apoiavam as ditaduras militares, hoje os Estados Unidos repetem seus erros "em defesa da democracia". E deixam um rastro de dor e barbárie em várias regiões do planeta. É assim em Guantânamo, no Afeganistão, no Iraque. Uma sucessão de crimes que, de acordo com outro entrevistado, um especialista norte-americano, poderiam levar o presidente George W. Bush a responder em tribunais internacionais pelos mesmos atos condenáveis que culminaram com a punição das cortes internacionais ao chileno Augusto Pinochet.
Dá uma certa tristeza ver que, de certa forma, a humanidade não andou. E que a gente segue repetindo os mesmos erros...
Quando terminei o exaustivo dia de gravações, tinha a exata sensação de estar fascinado pelo tema. E omiti aqui os nomes das pessoas entrevistadas propositadamente. Eles não são o mais importante; o mais importante é que a gente pense pra onde estamos levando o mundo...
PS: A matéria sobre a Operação Condor deve ser exibida em 2009, no Salto para o Futuro.