25.2.15

60!

Falo de leveza, de uma vida sem sobressaltos, sem soluços. Sem aflições maiores, sem grandes angústias...
Falo de abraços aconchegantes, de olhares cheios de ternura, de beijos doces e quentes, de mãos trançadas de felicidade...
Falo de muita disposição para falar. E para ouvir. De vontade para aparar as arestas. De uma garra sem tamanho para acertar. E melhorar cada vez mais, dia após dia.
Já são 60. 
Lindos, claro. Mas que ainda soam muito pouco, quase nada...

23.2.15

Cenas tristes e marcantes de um carnaval...

Em Salvador, miséria dos cordeiros e descaso com a limpeza da cidade destoam do clima contagiante da capital da Axé Music...

Assumo: em matéria de carnaval, sou bígamo: amante dos festejos cariocas e apaixonado pela farra baiana. E me divido doloridamente entre essas duas cidades - não por acaso, as duas de que mais gosto no país. Passo o pré-carnaval no Rio e o carnaval oficial na capital baiana. Na Cidade Maravilhosa, vou de bloco em bloco pra aproveitar a alegria de um carnaval de rua que a cada ano se torna mais pujante; mais frenético, mais festivo. E em Salvador, vou atrás dos trios de Ivete, Claudinha e Daniela, pulando como se não houvesse amanhã; como se as pernas não me fossem enviar a conta no dia seguinte. Afinal, no dia seguinte, lá vou eu pro circuito novamente, percorrer os seis quilômetros de felicidade e êxtase que separam a Barra de Ondina. Sem contar as noites em que a farra ainda se estende aos camarotes...
Foi assim em 2015: dividi meu amor, minha energia e minha alegria entre essas duas cidades. Mas o prazer de poder me divertir em mais um carnaval não ofuscou o choque ao perceber a miséria impressa nos rostos, nos olhos e nos pés descalços de muitos dos cordeiros dos blocos das cantoras baianas. Pra quem não sabe, cordeiros são os homens e mulheres - das mais variadas idades - que carregam a corda responsável por separar quem pagou pelos abadás do público que não pagou, a chamada pipoca. É deles a responsabilidade de impedir que o bloco seja invadido por quem não pagou para estar ali, perto do trio elétrico. De alguns deles ouvi que sua função é "nos proteger". "Estou aqui pra cuidar de você, brother", me disse um, provavelmente sem se dar conta de que há quem cuide dele. Dentro dos blocos de Salvador, os cordeiros expressam o maior contingente de negros, o que me faz lembrar que, sim, infelizmente a pobreza brasileira ainda tem cor. Negros de abadá? Poucos, muito poucos...
Não falo da miséria dos cordeiros por ter ficado assustado ao vê-la; como muitos representantes da tal classe média tantas vezes ficam. Não acho que a miséria deva ser escondida. Falo porque me assombro que ela exista numa festa que movimenta tantos milhões de reais. É um deboche com a sensibilidade de qualquer pessoa que se preocupe minimamente com o próximo perceber que há gente faturando alto que sequer se importa se a cordeira está descalça caminhando sob o asfalto quente por seis quilômetros. E mais aviltante ainda é saber que ela vai receber apenas alguns trocados por um sacrifício tão grande...
Numa festa feita por baianos para turistas, um outro momento ficou gravado na minha memória. Foi na segunda-feira de carnaval, quando o circuito ficou engarrafado e o atraso no percurso impediu que os foliões chegassem à área com banheiros químicos - em número tão insuficiente em Salvador como no Rio. Fomos para o Morro do Gato e a cena era terrível: num barranco lamacento, homens e mulheres urinavam, produzindo um barro fedido, eu escorria morro abaixo, encharcando tênis, sandálias, sapatos, meias. Sem pudor. Sem repressão. Sem drama de consciência. Éramos selvagens emporcalhando a cidade sem a menor culpa, simplesmente porque aquela era a única alternativa possível. Certamente esse detalhe sanitário foi esquecido por ACM Neto, prefeito que vem sendo muito elogiado pelos baianos por moralizar alguns serviços públicos e cuidar de obras importantes para a cidade. Não dá para uma cidade linda como Salvador se submeter a um ritual tão sujo, insustentável e indigno de uma das maiores festas do mundo! Não dá pra naturalizarmos um comportamento tão primário em 2015. Não dá pra acharmos natural que o espaço da avenida continue a ser loteado por camarotes impedindo, assim, que mais banheiros químicos sejam disponibilizados para a população e para os turistas. A festa é bonita demais pra permitir erros tão grotescos.
E também não dá - por mais que muitos se divirtam - para que os blocos continuem a cobrar tão caro pelos abadás e sigam tratando os cordeiros de forma tão aviltante e desumana. A seguir assim, a festa popular mais tradicional da Bahia - e uma das mais tradicionais do Brasil - vai caminhar a passos largos para se tornar cada vez menos...popular. E justamente por desprezar tanto a parcela mais genuinamente popular da folia...

9.2.15

Meu encontro com a intolerância em forma de mulher...

Não sei em que momento a classe média brasileira optou por ser a classe medíocre; cheia de discursos preconceituosos, repleta de ódio e pautada pela intolerância...


Meus amigos mais próximos sabem que costumo ser um cara ponderado. Muito ponderado, inclusive. Penso bastante antes de tomar decisões, penso no quê e em como falar, penso, penso, penso. Peso os prós e contras do que digo e do que faço. Não é algo calculado; nunca foi: é da minha essência. Poderia atribuir isso à tal balança, ícone do meu signo - libra - mas gosto mais de pensar que essa busca por equilíbrio é o caminho que venho trilhando, a cada dia, para ser um alguém melhor. Melhor para o mundo, para as outras pessoas e pra mim mesmo.
Raramente discuto. Raramente bato boca com alguém. Ontem, no entanto, a ponderação e essa busca pelo equilíbrio não foram suficientes para evitar que isso acontecesse. Foi no condomínio em que moro; na piscina aquecida - cujas águas, aliás, diante do calor desse verão, nem têm precisado ser artificialmente aquecidas.
Entrei na piscina e uma senhora - que também não estava aquecida e, sim, esquentadinha demais - gritava com o guardião. Ela se queixava aos berros do fato de uma jovem visitante estar dentro d'água usando um short; o que é vedado pelo regimento do condomínio. Eram pérolas como: "Eu pago isso aqui e cumpro as regras, por que uma visitante não tem que cumprir?" e "É o seu papel mandar ela (sic) tirar, você que é o 'piscineiro', eu sou moradora, não tenho que ficar me indispondo", esbravejava, como se fosse uma senhora feudal e o funcionário do condomínio, um seu escravo.
Respirei fundo quando a menina, de uns 16, 17 anos, tirou o short e continuou na água. Estava claro que não havia nenhuma intenção de desrespeitar o regimento: ela apenas não tinha sido comunicada sobre as regras para frequentadores da piscina. A moradora - que, durante a palestra, fazia questão de frisar sua condição de moradora, numa tentativa vã de menosprezar a jovem visitante - seguiu fazendo seus exercícios de hidroginástica e achei que a tarde de domingo voltaria ao curso normal...
Estava errado. O guardião da piscina precisou ir ao banheiro e um outro veio substituí-lo.  Esse outro guardião a moradora fez questão de tratar com uma certa simpatia; como se agora fosse a senhora de engenho a lidar com um capataz de confiança. E iniciou a ladainha, aos gritos, para voltar a constranger as jovens e a infernizar minhas pretensões de um fim de tarde relaxante. Foi quando se deu o seguinte diálogo:
- Mas por que você não está na piscina externa?
- Porque ela foi interditada agorinha.
- E por quê? - quis saber a mulher.
- Porque um morador fez as necessidades dentro.
- Foi aquele doente de novo?
Aí meu estômago embrulhou. O "doente" é um morador com deficiência. Eu tinha ficado sabendo do incidente pouco antes, quando decidi, então, usar a piscina aquecida. O jovem, com uns vinte e poucos anos, não tem controle sobre os músculos. Vai à piscina acompanhado da mãe. E, por conta dessa limitação, acabou sujando a água.
Ignorando completamente toda essa situação e todo e qualquer sentimento semelhante ao de compreensão, a mulher prosseguiu:
- Às vezes eu tô aqui, fazendo a minha aula de hidro, e ela traz ele pra cá! Bota dentro da piscina! E acha que tá certa! Diz que tem uma lei que garante o direito dele! Um absurdo! Ele tem quase trinta anos, sabe? Ele tem direito? Então ela tem é que levar uma multa quando isso acontecer! Prejudica todo mundo que paga pra ter acesso à piscina!
À essa altura eu já estava fora da piscina. Não suportei testemunhar esse ataque extremo do que há de mais abjeto no ser humano. Não suportei ver ali, diante do meu nariz, uma espécie de materialização daquelas colunas idiotas e cheias de preconceitos que andaram povoando as páginas dos sites e dos jornais dias atrás. Não suportei tanto desrespeito, tanto desamor, tanta grosseria. Não suportei ver que, em 2015, há gente parecendo mais desumana que qualquer homem das cavernas. Já vestido, fora da piscina, olhei pra ela e disse, no tom mais baixo que consegui utilizar (e era alto!):
- Quando a senhora quiser reclamar, por favor, procure a administração do condomínio.
Cega e idiota, como costumam ser todos os que compactuam com pensamentos tão tacanhos, ela achou que eu estava concordando com seu discurso:
- Pois é, meu amigo. É que não tem adiantado.
- Mas é lá que a senhora deve ir. Porque o seu direito de reclamar termina onde começa o meu direito de vir pra cá aproveitar uma tarde relaxante na piscina. E aqui, gritando desse jeito, a senhora estragou a tarde de todo mundo. Tá sendo desagradável...
- Você é morador? - ela devolveu, também tentando me desqualificar.
- Sou e tenho o direito de frequentar isso aqui sem ouvir ninguém fazendo escândalo. Falando do rapaz deficiente como você falou, com um discurso cheio de preconceito babaca!
Dei as costas, já de saída.
- Você é um mal educado! Falou palavrão!
Voltei:
- Mal educada e preconceituosa é você! Babaca não é palavrão, mas todo preconceito é babaca sim!
Saí a tempo de ver o guardião da piscina piscar o olho e sorrir pra mim; aliviado por se sentir defendido. Também houve tempo de escutar as palmas das meninas que estavam sendo metralhadas verbalmente por aquele patético exemplar de uma elite que recrimina e discrimina as diferenças; de uma elite velha e imoral, que acha que seu dinheiro paga tudo e que, por isso, deve ter todos os privilégios de que sempre pode usufruir. Aquela mulher, achando-se uma espécie de socialite da Lapa, enfurnada no seu "Condomínio Club" diz muito do Brasil. Diz muito do que vemos na TV, lemos nos jornais e na internet. Diz, também, muito sobre quem se acha melhor pelo que tem e não pelo que é. Humilhando as meninas, o guardião da piscina, o jovem deficiente e sua mãe - que sequer estavam lá para que pudessem se defender - aquela mulher jogou na minha cara o que há de pior e mais triste na nossa sociedade; jogou na minha cara que parte considerável da classe média brasileira optou por ser, na verdade, uma classe medíocre.
Saí da piscina nervoso, boca seca. Mas estava bem cinco minutos depois, cercado de amigos e rindo. 
Leve, como sou e como acho que a vida deve ser. E aprendi que não dá pra tolerar intolerância. E que todos que pensam num mundo mais plural, comprometido com um ideal de sociedade mais justa e menos desigual não podem se calar diante dessas manifestações torpes do que pode haver de mais desumano. Não fiz isso apenas pelas meninas, pelo guardião da piscina ou pelo menino com deficiência; fiz por mim. Vê-los humilhados me fez mal. E acho que só assim, sentindo uns as dores dos outros, poderemos, unidos, materializar uma outra forma de existir em sociedade.
Meu domingo seguiu. Ela, quando a deixei, continuava só na piscina. Sozinha e amarga, destilando ódio e rancor. A continuar assim, vai acabar se afogando na própria desumanidade...

6.2.15

Sobre o meu convívio com os velhinhos atletas...

Uma velhice leve: colegas de academia mostram que, sim, é possível...

Venho de uma família grande, cheia de tias e tios avós e lembro bem de sempre ter gostado de conversar com eles, ouvir suas histórias deliciosas, aprender o que achava interessante e, às vezes, aprender como não queria ser. Ou seja: velhinhos sempre me sensibilizaram muito. Talvez até mais que crianças...  
Há duas semanas, mudei de academia e passei a fazer algumas atividades físicas novas. Entre as novidades está uma aula chamada hidro power. À primeira vista, ainda na borda da piscina, fiquei meio cismado. Muitas vovós e alguns vovôs dentro d'água; pulinho pra lá, levanta a perna pra cá, simula uma corridinha acolá. Enfim, parecia um exercício menos puxado do que aqueles aos quais eu estava habituado.
Pois bem! Comecei a primeira aula e, lá pela metade, já estava pra lá de ofegante. Meus companheiros, vovós e vovôs, também pareciam exaustos - embora realizem os movimentos com menor intensidade. Mas notei em todos uma alegria imensa, um prazer inquestionável por estarem ali, fazendo a aula e colocando o corpo em movimento.
Terminei a aula cansado - e seduzido o bastante para repetir a dose: fiz a segunda aula, a a terceira e, no fim da quarta, já no vestiário, notei que um dos meus companheiros de piscina assobiava uma melodia familiar: "As pastorinhas", que ouvi minha vó cantarolar algumas vezes na minha infância... 
No meio da minha chuveirada, dei risada. De início eu achei a situação um tanto quanto inusitada: não esperava terminar a noite com aquele senhorzinho cantando "lindos versos de amor" no vestiário. Mas logo me senti feliz por aquele senhor; feliz por sua alegria e feliz por ver que a velhice pode ser leve, produtiva, saudável e cheia de música. Depois, passado aquele impacto inicial, fiquei pensando na força daquela canção. Resolvi pesquisar um pouco quando chegasse em casa - o fiz e descobri que "As pastorinhas" foi gravada pela primeira vez há quase 81 carnavais! Que potência! O senhor que a cantarolava no chuveiro ao lado, aparentando uns 70 anos, certamente não era nascido na época. Herdou a canção dos pais, talvez. Como eu herdei da minha vó. E como talvez os netos dele também a tenham herdado.   
Terminando meu banho, sorri. Achei graça. Senti saudades.
E decidi: quero ser um velhinho como ele!