7.5.13

Fantástico mostra a caçada a traficante e acende polêmica na internet

Reportagem expõe fragilidades da operação da polícia carioca na favela da Coreia 

Habituado a jogar games de tiros desde os tempos do Counter Strike, até os recentes Battlefield e Call of Dutty; vi bastante espantado as imagens exibidas pelo Fantástico ontem. Na tela, em ritmo frenético, policiais a bordo de um helicóptero da Polícia Civil caçavam o traficante Matemático. Sobrevoando uma favela, a força do Estado disparou uma enxurrada de tiros para deter o inimigo.
Fiquei chocado. Não com a morte do traficante - fato rotineiro e que, nesse caso, pareceu-me até menos impactante. Fiquei chocado ao ver o volume espantoso de disparos desferidos contra uma área residencial, civil, no meio de uma noite. Por mais que os envolvidos na operação neguem, é impossível afirmar que a população não tenha sido exposta a um enorme risco. E mais: é impossível dizer que os responsáveis por aquela ação tivessem segurança de que não haveria baixas entre os cidadãos que habitam a área. O que vimos foi um vale-tudo, em que, embora sem que isso tenha sido dito, a polícia assumiu os riscos de ferir e/ou matar inocentes em troca da cabeça do alvo da vez. 
"Mas não houve vítimas", podem dizer os defensores da operação. Sim, ao que parece, não houve vítimas. Mas não acho leviano afirmar que se ninguém morreu foi por obra da sorte. Ou da Graça Divina. Ou de um ou outro Anjo da Guarda de prontidão. Porque os tiros cravados nas residências da favela não deixam dúvidas: de precisa aquela caçada não teve nada!
Não bastasse o susto com o flagrante despreparo da força policial, fiquei novamente espantado ao ver a repercussão das imagens mostradas pela TV Globo nas redes sociais. Enxergando na reportagem uma defesa à vida do bandido, vi vários amigos descerem o pau na matéria. "Deixem a polícia trabalhar", dizia um. "Quantos inocentes morreriam se ele ficasse vivo?", questionava outro. Mas não vi ninguém, absolutamente ninguém, questionar o risco ao qual todos aqueles moradores, inocentes, estiveram expostos naquela noite. Calados ou, pior, defendendo a ação da polícia, o que todos fazem, ainda que de modo inconsciente, é legitimar uma polícia que trata de modo desigual pobres e ricos. Uma polícia que age com prudência e cautela nas áreas nobres e "larga o dedo" quando o alvo está escondido em favelas. É como se dissessem que "favelado pode acordar com tiro de fuzil furando suas casas". É como se achassem justo que, para proteger ricos e classe média, pobres sejam sacrificados por uma rotina de incursões policiais atabalhoadas e que, não raro, acabam por vitimar crianças, mulheres, velhos e cidadãos inocentes, moradores de comunidades dominadas pelo tráfico e massacradas por uma polícia que, quando surge, parece fazê-lo com o único objetivo de espalhar medo e insegurança por todos os lados.
É só refletir: alguém já viu um helicóptero dar rasantes sobre Ipanema, distribuindo tiros de modo quase aleatório? Quando foi capturado Nem, apontado como liderança do tráfico na favela da Rocinha, ouviu-se algum disparo? Respondo: não! À ocasião, aliás, cabe dizer que a polícia usou a mesma tecnologia de imagens para localizar e capturar o bandido na Gávea. Ali, sim, a precisão esteve presente. E os moradores da Zona Sul não ouviram um único estampido. Por que será?
O fato é que construímos, ao longo do tempo, uma polícia que trata de modo discrepante quem já é vítima da desigualdade. Quem mora numa favela não quer correr o risco de ser alvejado por uma bala de fuzil. Esse risco já está imposto pelo tráfico. A polícia, em suas operações, deve primar pelo zelo com a segurança dos moradores inocentes. É claro que aqui, como em qualquer parte do mundo, acidentes podem acontecer. Comunidades como a que foi mostrada na reportagem do Fantástico são densamente povoadas, a ocupação do terreno é irregular e esses são fatores que complicam as incursões do Estado. Mas, a julgar pelo que vi, acidente é uma operação como aquela transcorrer sem que nenhum inocente seja vitimado. Acidente é disparar trocentos tiros, acertar prédios e casas e, ainda assim, não matar moradores honestos.
Não sei quanto a vocês, mas o mínimo que eu posso esperar de uma polícia é que ela não conte com a Graça Divina, com a sorte ou com a benevolência de Anjos da Guarda ao fazer suas operações. A vida do cidadão – no asfalto  ou na favela – é bem maior, que deve ser garantido e preservado pelo Estado em quaisquer circunstâncias, seja onde for. E não há “remédio amargo” que justifique que a sociedade continue a tomar veneno e esperar se curar de toda essa violência.