Enquanto esperava a van ontem, na volta da TV, avistei um menino que engraxava sapatos. Era esmirradinho, uns 9 anos aparentemente. Ajoelhado sobre o par de havaianas gastas pelas andanças de sua vida já tão dura, o garoto se esforçava para fazer brilhar um velho sapato preto do engravatado que estava na minha frente.
Na caixinha de madeira, o preço da sorte do menino: R$ 2. No olhar, toda a garra para convencer que era, sim, capaz de merecer o pagamento pelo seu trabalho.
Um garoto, meu Deus. Apenas um garoto...
Sei que como ele há milhares. E não sei se ando boboca ultimamente, mas meus olhos se encheram de lágrimas. Ali, olhando aquele menino de olhos paradoxalmente tão errantes e decididos, fiquei pensando em como a vida sorri pra uns e castiga tantos outros. E pensei que se viver é mesmo jogar, muita gente tem a sina de já começar a partida com uma enorme desvantagem.
Olhei para o lado e vi algumas pessoas que, como eu, foram tocadas pela situação. Mas logo o baque com a força daquela imagem era deixado de lado: todos estavam preocupados demais com o atraso da van. Todos estavam preocupados demais com a possibilidade de perder o capítulo decisivo da novela das oito.
Todos, menos o garoto.
Talvez nem tivesse uma televisão para ver. Talvez nem se achasse no direito de esquecer os dramas precoces de sua vida diante de uma tela que tantas vezes mostra um mundo de mentirinha.
Caprichando para arrancar brilho do couro suado daqueles sapatos pretos, o menino me fez ver como somos pequenos ao fazer das pequenas durezas do dia-a-dia grandes dramas existenciais. Sem saber nem quem eu sou, aquele menino me fez sentir ridículo por ter reclamado tanto por conta de uma obra em meu quarto - que eu mesmo inventei e paguei. Obra que me fez dormir no chão, mas sob o meu teto.
E ele, será que tem um teto?
Quando terminou o serviço, o menino engraxate me surpreendeu pela delicadeza e pelo extremo cuidado ao guardar dentro da caixinha de madeira seus utensílios profissionais: a graxa, uma escova, uma escova de dentes com as cerdas gastas e pretas e as flanelas. Depois, colocou tudo dentro de uma mochila toda rasgada, recebeu os seus R$ 2 e, com brilho nos olhos, disse um muito obrigado ao engravatado a quem tinha prestado seu serviço.
Muito obrigado. Ele ainda tem o que agradecer...
Vi aquele menino franzino se afastar e pensei até quando ele vai ter esperança de que o melhor caminho é o da honestidade, o da retidão. Até quando ele vai pensar que pode mudar sua história, seu destino, mesmo que nada e nem ninguém lhe estenda a mão. E, mais que tudo, até quando ele vai precisar, aos 9 anos, engraxar sapatos no Centro da cidade para ter direito a ter um pouco menos do que tantos de nós descartamos todos os dias.
Vi tudo isso, pensei em tudo isso. E assumo: senti vergonha de mim, de você, de nós...desse país desigual e desse mundo injusto e desumano. Mundo no qual bilhões de dólares são usados para estancar a crise dos mais ricos; outros bilhões são gastos em guerras desnecessárias - com a licença do que, a meu ver, soa como um pleonasmo - enquanto, a cada dia, milhões são os que levantam cedo para batalhar duramente por um pouco mais de esperança...
2 comentários:
Tb tenho essa sensação, emoção vivida por vc... No Brasil convivemos com essas desigualdades diariamente. É uma pena, mas tb uma oportunidade de aprendermos a ser pessoas mais conscientes, melhores e lutarmos por uma sociedade mais justa e igualitária.
É, Sandrinha, você tem razão sim. O que me espanta é a naturalidade com que tanta gente encara situações desse tipo...
Bj!
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