19.3.08

Esperando o oftalmologista...

Hoje uma história me surpreendeu. Não pelo ineditismo, que é nenhum, mas pela forma como as reviravoltas da trama chegaram até mim. Inusitadamente, na sala de espera de um consultório médico, fui testemunha do desabafo de um mulher que tinha tudo para ceder sua história para qualquer uma dessas novelas de tevê...

Sílvia é uma coroa inteiraça. O corpo bem feito e o perceptível botox na região dos olhos tentam esconder, mas dá pra notar que ela já está beirando os sessenta. Comunicativa, usa o dom da palavra para se queixar. Primeiro, dos incômodos sintomas de um problema qualquer nos olhos. Depois, de dores mais profundas.
Conta ao estranho que, bodas de prata completadas, divorciou-se. Contra a vontade. O marido, um bem-sucedido ginecologista, a trocou por outra, na mesma faixa etária - "e nem era recauchutada!". A nova esposa do ex-marido é, na verdade, uma "paixão antiga", um arrebatador amor da juventude que, por todo o tempo do casamento, permaneceu ardendo, disfarçado como brasa coberta de cinzas.
Sílvia, é claro, não sabia da existência de uma eminência parda - a rival. Soube apenas no momento em que o casamento subiu no telhado. E no mesmo momento soube que a escolhida para fazer feliz o homem que julgava seu se chamava Roberta. O mesmo nome que, uns vinte e poucos anos antes, o marido a convenceu a colocar na filha única.
O desabafo não denota tristeza alguma, apenas um profundo desespero e uma vontade louca de contar - e recontar - a tal história dolorida, como se a repetição fosse capaz de fazê-la se acostumar com tanta dor. Uma dor que não foi amenizada nem com os apartamentos de luxo que lhe couberam na separação. Todos devidamente alugados. Todos com condomínios caríssimos que Sílvia está longe de ter condições para pagar.
Na corda-bamba da sobrevivência, a sessentona-toda-boa diz rezar todos os dias para que não chegue o dia em que um de seus inquilinos resolva se mudar, por ter a certeza de que, se a fatídica data chegar, não mais terá condições de arcar com as despesas administrativas dos imóveis de luxo - que não lhe rendem nenhum luxo.
Entre risos nervosos e momentos de olhar perdido, em busca de uma reflexão qualquer perdida num canto qualquer do universo, lamenta-se dos vinte e cinco anos de uma luta que julga perdida nos momentos finais; justo os momentos em que poderiam - ela e o marido - apenas colher os frutos de uma vida de trabalho.
Agora, Sílvia diz ao estranho que se diverte apenas ao jogar cartas. Troca os dias pelas noites nas rodas de tranca. Quando chega a manhã, já está trancada no apartamento em que vive, cortinas fechadas, ar condicionado ligado. Dorme quando o sol acorda, não quer mais ver os dias. Resignada, olha para o interlocutor e se auto-diagnostica: "Isso é depressão!".

Essa é a história. Real. E que, sei lá o motivo, mexeu comigo na manhã de hoje. A ponto de, enquanto a protagonista era atendida, pegar meu bloco e anotar os pontos fundamentais para não perder o fio da meada na hora de trazê-la aqui pro blog.
Para preservar a autora desse relato informal, os nomes citados são todos fictícios. De verdadeira, basta a dor que pude notar nos olhos daquela solitária senhora. E não me refiro à dor física...

2 comentários:

Bárbara Pereira disse...

Belo texto. Parabéns!!!

Unknown disse...

Ô, Cálega!
Brigadão!
A história da moça me chamou a atenção mesmo...
Bj!