3.9.07

Quando a morte é a melhor conselheira...

Ainda pequeno, quando soube que morrer era o destino de todos, passou a achar a vida uma brincadeira extremamente sem graça. Era meninote ainda, mas esperto o bastante para não mais crer naquela conversa mole de que, num belo dia, todos virávamos estrelas. Perguntava-se qual a razão que mantinha todos interessados em levar aquela história em frente se, no fim, só sobrariam dor e lágrimas. Se, depois de tudo, aquelas pessoas tão amadas sofreriam tanto na hora de uma despedida covarde, compulsória, terrivelmente triste.
Com o passar dos tempos, foi experimentando perdas. E choros. E dores. E despedidas. Esforçava-se para tentar estabelecer uma relação mais saudável com a morte, mas sempre que se via diante dela, arrefecia. Não parecia ter forças para resistir ao pavor da idéia de ver suas pessoas partirem...
Penalizava-se com a triste sina das mães e dos filhos. Idéia absurda separá-los! Jeito estúpido de desfazer o mais profundo dos laços de amor. Se não confiasse em Deus, teria visto até uma ponta de maldade nesse desígnio. Tentava entender, mas não conseguia.
Um dia, num cemitério, envolto por aquela atmosfera de pesar, avistou a bela mulher envolta por uma névoa. Espreitava tudo ao longe, atrás de um túmulo de aparência requintada. Rodeada de flores murchas, depositadas sobre a laje da sepultura, ela o chamou. Aliás, ele nem sabia ao certo como havia entendido o chamado, uma vez que a tal mulher não se moveu e nem ensaiou pronunciar nada. Mas o chamou, sabia. Sentira.
Disfarçou e se afastou do grupo que acompanhava aquele sepultamento quando o padre parecia já prestes a terminar sua ladainha. Aproximava-se da mulher e a névoa parecia se tornar mais forte, deixando mais difícil qualquer tentativa de desvendar o rosto da interlocutora. A névoa tinha um cheiro doce, que, contraditoriamente, parecia-lhe familiar e desconhecido demais. Esforçava-se para interpretar o cheiro quando ouviu, sem que a moça nada falasse...
- Assim é, assim será. Com você, com todos. Vês o padre? Agora encomenda o corpo. E amanhã terá o próprio corpo encomendado por algum colega.
Assustou-se. Como ela falava se não mexia a boca? Pensou em perguntar a identidade da interlocutora, mas notou que sua boca também parecia agora incapaz de se mover. Notou nos olhos dela uma expressão serena, e a estranha conversa prosseguiu.
- Sou esse alguém de quem tem tantas mágoas. Esse alguém por quem sempre rezaste a pedir que me mantivesse longe de ti e dos teus. Quanta preocupação, filho! Não se deve ter revolta contra a ordem natural das coisas, nem tampouco pensar tanto sobre isso. Apenas se deve viver, preocupando-se com a felicidade e com a felicidade de todos que se ama e que amas também. Não se deves deixar que a dureza do mundo petrifique o coração, e nem que o torne tão gelado quanto o tampo dessa sepultura. É preciso viver com as pessoas queridas momentos de amor e alegria; e, assim, elas seguirão para sempre guardadas no coração e na lembrança. E quando a hora chegar, haverá a saudade, mas também o conforto e a certeza de se ter dado o melhor a cada uma delas.
- Pense nisso, filho - continuou a moça, tocando seu rosto com sua mão translúcida e quente - e desapega-te. Do mundo, das pessoas, das coisas que te disseram sempre ser de valor. Porque se há tolos que temem o fim de tudo, mais tolos são os que se apegam à matéria e às coisas da matéria. Acumulam jóias, dinheiros, carros importados, roupas caras e toda sorte de quinquilharias que nunca serviram a nenhum deles quando lhes chegou a hora de largar esse mundo pra trás.
Sentiu como se lágrimas escorressem por seu rosto quando a moça lhe disse que todos seus amigos e familiares que haviam partido sempre olharam com carinho por ele. Intercediam em seu favor e faziam o possível para evitar que suas angústias e sofrimentos tirassem a alegria contagiante que tinha quando estava na companhia daqueles que amava. Chorou quando ela disse que nunca mais ficara só, mesmo nos momentos de mais extrema solidão.
A sensação era de uma estranha afeição por aquele alguém de quem, até então, guardara apenas mágoas e medo. Tudo nela lhe parecia tranqüilizante: a voz, o toque das mãos, o perfume indecifrável daquela névoa que agora também o envolvia. Olhos ainda marejados, encarou a bela moça e, enfim, conseguiu dizer algo, enquando a mãe jogava um arranjo de flores sobre o caixão do filho:
- Queria muito poder, mas sinto que não tenho como lhe agradecer por essa nossa conversa...
E ela segurou sua mão suavemente, tocou seu rostou com a outra mão - igualmente macia - e, pela primeira vez como fazem os humanos, disse:
- Não precisa dizer nada agora. Ainda há tempo para conversarmos mais.
E a névoa se tornou novamente espessa, envolvendo os dois. Convertidos naquela espécie de fumaça cheirosa, ganharam o céu e se misturaram às nuvens daquele fim de manhã de inverno enquanto a mãe dele, o morto, desmaiava ao ver a primeira pá de terra cair sobre o caixão do filho...

2 comentários:

Unknown disse...

Grande Murilo!

É a sentença e destino de todos nós.

A humanidade avança, mas o medo da morte fica... Tão inabalável que o mais profundo conhecimento humano empaca diante de tal certeza, para a qual nunca estaremos preparados.

"Revertere Ad Locum Tum"

Abração e parabéns pelo texto!

Gustavo

isabella saes disse...

ADOREI!!! Esse assunto me intriga e acho que é por isso que meu primeiro conto foi para essas bandas misteriosas!!! Beijos, querido!!!