Em novo show, baiana celebra a brasilidade e o diálogo com outros povos e ritmos. E ainda presta deliciosa homenagem à Pequena Notável Carmem Miranda...
No início da década de 90, quando eu me despedia da infância e começava a me interessar por uma cultura que ia além das minhas revistas em quadrinhos, Daniela Mercury surgiu e me fez prestar atenção naquele som de pegada forte, vigorosa, ritmado e irresistível. Era o som da percussão, do samba-reggae. O som de um Brasil que eu nem conhecia ainda, mas, naquela época, descobri que já pulsava em algum lugar aqui dentro - talvez nas memórias ancestrais, talvez num pedaço qualquer do neguinho que está por trás da minha pele branca e dos olhos castanhos claros.
Tinha pouca grana e me lembro de juntar uns trocados pra comprar um LP da baiana. Era o terceiro, Música de Rua. E me esbaldei ouvindo aquele repertório interpretado pela voz firme e metálica de Daniela. E, desde então, passei a acompanhar sua carreira com entusiasmada atenção. Tenho todos os seus Dvds e a cada novo lançamento, fico novamente surpreso com o requinte estético e com o poder de reinvenção dessa baiana que não se acomodou no trono de Rainha do Axé - conquistado há quase vinte anos. Se foi sucedida na coroa, Daniela não se apequenou: seguiu buscando realização e explorando o melhor que sua inquietação artística pode render. É essa inquietação que está em cena em Canibália, o novo show da baiana. Com início envolvente - que traz a artista num solo de dança - o espetáculo hipnotiza a plateia e mostra, sobretudo, uma Daniela Mercury em absoluta forma. A voz aparece mais potente do que nunca e o corpo nunca deixa de obedecer aos comandos da cantora - e, aos 44 anos, ela exige muito dele!
Vi todo o espetáculo sem a condescendência de um fã. Queria mais que isso. E encontrei uma artista inteira em cena, consciente do seu poder e do valor do seu repertório. Daniela Mercury mostra, nesse show, como estava certa ao romper as fronteiras da axé music e dialogar com os mais variados estilos e sonoridades. Canibal, ela bota no mesmo caldeirão Belchior, Raul, Roberto, Brown, Caetano e Chico. É perfeita em quase todas as canções - embora eu tenha achado a leitura de O que será? bem chatinha. Cantando Eu nasci há 10 mil anos atrás, Daniela arrepia e arranca um coro potente de um Canecão lotado. Em Como nossos pais, oferece ao público - saudoso de Elis Regina - uma versão de andamento ligeiramente mais rápido, que resulta numa interpretação única e emocionante.
Antenada, a baiana evoca Carmen Miranda e faz um dueto criativo e alto astral com a Pequena Notável numa versão twist para O que que a baiana tem?, num número divertido, calcado na interação de Daniela com seus (ótimos) bailarinos.
Mas é com sua fileira de hits que a artista o Canecão explodir. Ilê Pérola Negra, Batuque, Swing da Cor, Rapunzel, O canto da cidade e Maimbê Dandá ainda exalam frescor e funcionam como convites irrecusáveis pra fazer o público dançar freneticamente. E o mesmo pode ser dito da nova (e ótima) Oyá por Nós.
Deixei o Canecão com um sorriso de moleque no rosto. É bom ver que nossos ídolos ainda são os mesmos. E ver que Camille Paglia estava certíssima ao dizer que Daniela é tudo o que Madonna gostaria de ser...
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