Sobre a mesa, além de pilhas e pilhas de fotografias, a plaquinha não deixava dúvidas: aquele era o ambiente de trabalho do Cupido. Uma sala pequena, com um grande alvo pintado numa das paredes e uma infinidade de flechas destinadas ao treino diário do arqueiro mais famoso de que se tem notícia quando o assunto é amor. Mas a fama não andava das melhores...
Lá no Andar de Cima, o Departamento de Controle de Qualidade era rigoroso. Trabalhava com alta tecnologia. Toda vez em que alguém, em algum lugar do planeta, citava um dos colaboradores do Paraíso, as caixas de som reproduziam as falas em tempo real. Para Pedro eram comuns os pedidos de sol nos finais de semana, torcida para que as chuvas não fossem tão intensas e para que pusesse em bom lugar os novos habitantes. Cristóvão recebia mensagens de motoristas e familiares preocupados com as viagens pelas estradas. Edwiges, do Departamento Financeiro, vivia com calculadoras nas mãos, tentando resolver os imbróglios econômicos do povo da Terra. Maria - cheia de graça e de apelidos - vivia intercedendo por mães e filhos. E, assim, a grande equipe cuidava de gerir as coisas lá em cima, para que nada fugisse dos trilhos aqui embaixo.
Mas Cupido tinha virado um funcionário-problema. Eram diárias e muito numerosas as mensagens ouvidas no sistema de som do Paraíso. Vinham de todos os cantos! "Querido, a flecha que você enfiou aqui era pra enfiar lá também, na outra parte...INCOMPETENTE!!!", dizia um. "Enfia a flecha no...", bradava um sujeito mais rebelde. "Cego, sem pontaria!", queixava-se um terceiro. "Mantenha distância", clamava alguém traumatizado pelas flechadas equivocadas de outrora. Sem falar nos que tiravam sarro da pontaria errante: "Óticas do Povo. Morou? Hahai".
Pobre Cupido. Raramente ouvia elogios. Ninguém queria saber de suas condições precárias de trabalho, da falta de assistentes, de sua miopia galopante, das lesões por esforço repetitivo e, mais que isso, do quão injustiçado se sentia toda vez em que alguém, depois de ser agraciado por uma flechada caprichada, atribuía os louros da conquista a Antônio - seu concorrente direto no Departamento Afetivo. Antônio tinha até um dia só para ele, ganhava missas e mais missas. E Cupido, em contrapartida, só ouvia queixas.
Foi então que decidira, tempos atrás, deixar correr frouxo. Pendurou o paletó na cadeira, deixou de praticar a pontaria e passava os dias de asas paradas, braços cruzados, deixando os reclamões se virarem aqui na Terra. Se ninguém mais levava fé em seu talento, não havia razão para provar seu dom. Sobrecarregado, Antônio também não dava conta do recado e o Departamento Afetivo entrou em colapso.
O Diretor-Geral andava preocupado com os rumos que a coisa estava tomando com a operação-padrão empreendida por Cupido. Mas não podia demití-lo: eram muitos anos de casa e as indenizações poderiam deixar o Paraíso no vermelho. E vermelho, vocês sabem, tem mais a ver com o laytout do subsolo...
Um dilema sem solução conhecida. E esse é o estado atual das coisas. Cupido segue de braços cruzados, Antônio continua incapaz de suprir a demanda e, cegos, todos nos perdemos e nos achamos aqui na Terra. Vivemos aos esbarrões, ora dando cotoveladas, ora recebendo abraços e beijos. Deixamos as coisas do coração ganharem ares de jogo de azar: apostamos na roleta, vemos nossas fichas serem levadas e, empobrecidos a cada fracasso, voltamos a tentar a sorte, cada vez menos certos de sua existência. De tropeço em tropeço, o cansaço vai nos vencendo e a tendência é valorizar o que não tem valor, e confundir o que realmente é precioso com o que é apenas mais do mesmo.
É fato que a imprudência do Cupido nos deixou perdidos. Marcados por feridas deixadas por flechadas jamais cicatrizadas, fechamos nossas almas para novos encontros à espera de um momento ideal que, de fato, nunca chegará. Porque não se pode crer num momento oportuno para sentir o coração acelerar, as pernas tremerem e a boca secar só porque aquele alguém especial telefonou. Ou porque deixou de fazê-lo. Não há hora certa para sentir o peito apertadinho de saudade ou para os olhos molharem com a lembrança de um beijo. Não há dia perfeito para que todos os beijos da boca amada pareçam insuficientes diante da enormidade do nosso desejo.
E talvez você se pergunte: o que pode ser feito? Mensagens zangadas para o Cupido de pouco resolvem - há quem diga que os responsáveis pelo sistema de som do Paraíso andam providencialmente fazendo uma triagem para evitar reclamações sobre o tema. Portanto, o melhor a fazer pode ser seguir o conselho de Luzia: cuidar bem dos olhos. Porque, num desses esbarrões da vida, você já pode ter dado de cara com alguém especial sem ter sequer percebido. E deixar passar pode ser perigoso.
A menos que você seja do tipo que, num cassino, não tem medo de arriscar tudo na roleta...
PS.: Glaucio Marfir, Thiago Dionisio Costa, João Gustavo Mello e Pedro Leonardo: obrigado pela colaboração! ;-)
5 comentários:
Eu só queria que meu amiguinho arqueiro direcionasse sua flecha à quem acredito ser minha cara mestade, uma vez que ele ainda não sabe. Rsrs
Grande texto!
É por aí mesmo. O cansaço aumenta, e os padrões caem. E é cada derrota... Não dá pra botar tudo na conta do coitado do cupido!
Agora vejo que fui muito rigoroso com o sujeito ao mandá-lo pras Óticas do Povo...
E acabei de ver aqui no Facebook um texto legal sobre "cuidar bem dos olhos":
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI244764-15230,00.html
Bom insight! Talvez a maior dificuldade para encontrar "a" pessoa esteja em nossa pouca disposição de olhar com cuidado, de considerar possibilidades vetadas pelo "automático" e pelos preconceitos do senso comum - que insistem em deixar seus resquícios até nas mentes mais abertas...E assim, perdemos bilhetes premiados.
Além do alerta - para lá de útil - achei o texto muito espirituoso, bem-humorado, inteligente e leve - bom contraponto para um assunto doído!
Belo gol!
A D O R E I a qualidade do texto, e as lógicas ilógicas.
Mas a pergunta é: porquê o cupido tem que fazer todo o trabalho? Acho muito fácil colocar a culpa nele e preguiçoso da parte de muitos quando não assumem sua parcela de incapacidade ao lidar com crescimento de seus relacionamentos, bem como da baixa estima de cada um que faz da flexa de tal cupido "um dedo pobre".
Maravilhoso texto, compartilhando!
Abraço!
Monik Ornellas
Muito bom texto!
Realmente os cupidos andam deixando a desejar.
Dia desses, postei um comentário no meu Facebook, dizendo que achava que o meu andava tomando cachaça - por mim e por ele, diga-se de passagem, já que não sou adepto ao álcool.
E por aqui ficamos, a dar "encontrões" na multidão.
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