Reportagem expõe fragilidades da operação da polícia carioca na favela da Coreia |
Habituado a
jogar games de tiros desde os tempos do Counter Strike, até os recentes
Battlefield e Call of Dutty; vi bastante espantado as imagens exibidas pelo
Fantástico ontem. Na tela, em ritmo frenético, policiais a bordo de um
helicóptero da Polícia Civil caçavam o traficante Matemático. Sobrevoando uma
favela, a força do Estado disparou uma enxurrada de tiros para deter o inimigo.
Fiquei chocado.
Não com a morte do traficante - fato rotineiro e que, nesse caso, pareceu-me até
menos impactante. Fiquei chocado ao ver o volume espantoso de disparos
desferidos contra uma área residencial, civil, no meio de uma noite. Por mais
que os envolvidos na operação neguem, é impossível afirmar que a população não
tenha sido exposta a um enorme risco. E mais: é impossível dizer que os
responsáveis por aquela ação tivessem segurança de que não haveria baixas entre
os cidadãos que habitam a área. O que vimos foi um vale-tudo, em que, embora
sem que isso tenha sido dito, a polícia assumiu os riscos de ferir e/ou matar inocentes
em troca da cabeça do alvo da vez.
"Mas não
houve vítimas", podem dizer os defensores da operação. Sim, ao que parece,
não houve vítimas. Mas não acho leviano afirmar que se ninguém morreu foi por
obra da sorte. Ou da Graça Divina. Ou de um ou outro Anjo da Guarda de
prontidão. Porque os tiros cravados nas residências da favela não deixam
dúvidas: de precisa aquela caçada não teve nada!
Não bastasse o
susto com o flagrante despreparo da força policial, fiquei novamente espantado
ao ver a repercussão das imagens mostradas pela TV Globo nas redes sociais.
Enxergando na reportagem uma defesa à vida do bandido, vi vários amigos
descerem o pau na matéria. "Deixem a polícia trabalhar", dizia um.
"Quantos inocentes morreriam se ele ficasse vivo?", questionava
outro. Mas não vi ninguém, absolutamente ninguém, questionar o risco ao qual
todos aqueles moradores, inocentes, estiveram expostos naquela noite. Calados
ou, pior, defendendo a ação da polícia, o que todos fazem, ainda que de modo
inconsciente, é legitimar uma polícia que trata de modo desigual pobres e
ricos. Uma polícia que age com prudência e cautela nas áreas nobres e
"larga o dedo" quando o alvo está escondido em favelas. É como se
dissessem que "favelado pode acordar com tiro de fuzil furando suas
casas". É como se achassem justo que, para proteger ricos e classe média,
pobres sejam sacrificados por uma rotina de incursões policiais atabalhoadas e
que, não raro, acabam por vitimar crianças, mulheres, velhos e cidadãos
inocentes, moradores de comunidades dominadas pelo tráfico e massacradas por
uma polícia que, quando surge, parece fazê-lo com o único objetivo de espalhar
medo e insegurança por todos os lados.
É só refletir:
alguém já viu um helicóptero dar rasantes sobre Ipanema, distribuindo tiros de
modo quase aleatório? Quando foi capturado Nem, apontado como liderança do
tráfico na favela da Rocinha, ouviu-se algum disparo? Respondo: não! À ocasião,
aliás, cabe dizer que a polícia usou a mesma tecnologia de imagens para
localizar e capturar o bandido na Gávea. Ali, sim, a precisão esteve presente.
E os moradores da Zona Sul não ouviram um único estampido. Por que será?
O fato é que
construímos, ao longo do tempo, uma polícia que trata de modo discrepante quem
já é vítima da desigualdade. Quem mora numa favela não quer correr o risco de
ser alvejado por uma bala de fuzil. Esse risco já está imposto pelo tráfico. A
polícia, em suas operações, deve primar pelo zelo com a segurança dos moradores
inocentes. É claro que aqui, como em qualquer parte do mundo, acidentes podem
acontecer. Comunidades como a que foi mostrada na reportagem do Fantástico são
densamente povoadas, a ocupação do terreno é irregular e esses são fatores que
complicam as incursões do Estado. Mas, a julgar pelo que vi, acidente é uma
operação como aquela transcorrer sem que nenhum inocente seja vitimado.
Acidente é disparar trocentos tiros, acertar prédios e casas e, ainda assim,
não matar moradores honestos.
Não sei quanto a
vocês, mas o mínimo que eu posso esperar de uma polícia é que ela não conte com
a Graça Divina, com a sorte ou com a benevolência de Anjos da Guarda ao fazer
suas operações. A vida do cidadão – no asfalto
ou na favela – é bem maior, que deve ser garantido e preservado pelo
Estado em quaisquer circunstâncias, seja onde for. E não há “remédio amargo”
que justifique que a sociedade continue a tomar veneno e esperar se curar de
toda essa violência.